Sim, aquela era uma tarde de ansiedade. Só havia a Nacional 1 e o caminho era muito longo. O tio tinha sempre um carro bom, mas mesmo assim… Nunca mais chegavam! E sem eles chegarem não começava o Natal. A mãe não fechava o supermercado, a avó não repunha na árvore todas as bolas, pinhas e coelhinhos de chocolate que havia comido nos dias que antecederam a véspera e o pai não transportava às escondidas os presentes para a sala de estar. Mal escurecia começavam as minhas viagens entre a saleta e a porta da rua. Mais uma e outra espreitadela. Nada. Nunca mais chegavam. Por fim lá tocava o telefone: - não se preocupem. Já estamos na Vila da Feira. Viemos ao Rossio tomar um café. Mais 10 minutos e estamos aí. E então fechava-se o supermercado, as bolas as pinhas e os coelhinhos voltavam para o pinheirinho e as prendas trancavam-se na austera sala de estar. Era a tarde de 24 de Dezembro e os tios de Lisboa estavam a chegar. O Natal já podia começar.
Mas se a minha ansiedade era grande, para o resto dos meus amigos do lugar de Paçô em São João de Ver, era muito maior. Eles teriam de esperar até à noite de 25 de Dezembro para celebrarem o Natal com a família!
Como povo, temos esta particularidade que penso única no mundo de, em algumas das nossas freguesias, a noite de consoada acontecer a 25 e não a 24 de Dezembro. Enquanto o mundo inteiro se reúne à volta da mesa para celebrar o nascimento de Jesus, cumprindo uma tradição, cuja origem não conhecemos, aguardamos pela noite de 25, conscientes de que estamos sozinhos, mas certos da nossa razão. É a verdadeira noite silenciosa. Afinal… não se celebram os aniversários de véspera!
A singular tradição de a noite de consoada ser a 25 e a não a 24 de Dezembro deve ser preservada e incentivada. As terras (algumas de concelhos limítrofes) que neste dia único se tornam elas próprias únicas, devem procurar que as suas famílias continuem a consoar no dia 25 enquanto o resto do mundo come o que sobra das rabanadas de vinho e dos bilharacos. Num Natal cada vez mais globalizado, afirmar o que nos distingue, resistindo a lógicas comerciais massificadoras, é um importante contributo para a diversidade cultural que nos deve unir.
Podemos e devemos tentar compreender como surgiu esta curiosidade que já suscitou, por mais do que uma vez, o interesse das nossas televisões. Conheço, por tradição oral, duas versões. A primeira, mais lendária, afirma que tudo se deve ao facto de, em tempos idos, as famílias que não pertenciam à nobreza terem de servir, na noite de 24, os senhores da Terra de Santa Maria. Assim o seu Natal ficaria adiado para a noite de 25. No meu lugar de Paçô, para nós crianças, a história fazia sentido: os antigos eram criados do senhor conde de Fijô e por isso tinham que trabalhar na noite de 24 e só podiam fazer o seu Natal no dia a seguir. Esta versão é altamente improvável porque, a ser assim, em várias outras terras deste nosso país, muitas delas mais influenciadas por famílias nobres, deveria verificar-se a mesma tradição.
A segunda versão, mais plausível e que por isso deve ser investigada, conta que, quando a indústria corticeira se concentrava no concelho de Vila Nova de Gaia mas os trabalhadores eram largamente recrutados no nosso concelho, em especial nas freguesias do norte, acontecia que, dados os horários de sol a sol que então se praticavam, os operários, que faziam o caminho a pé, chegavam já demasiado tarde e cansados a casa para se reunirem à volta de uma mesa festiva. Aproveitavam então o feriado de 25 para consoarem. Na casa dos meus avôs de Santa Maria de Lamas, família desde sempre ligada às rolhas, era esta versão que explicava que a grande reunião familiar se realizasse na noite de 25.
Para mim, que tenho família em terras de 24 e terras de 25 foi sempre assim: consoada a 24, farrapada para o almoço de 25, consoada a 25! Que sorte!
Que seja um Feliz Natal para todos nós!
2 comentários:
Bom, só posso aconselhar a ler um artigo dum ilustre feirense, Doutor Carlos Ferreira de Almeida sobre o Natal e esta suposta, única, original, universal tradição bilhense.
Basta recuar uns anitos e a coisa era muito praticada, por exemplo, ainda há pouco soube que também na Madeira.
Nem queria dizer que a tradição é de terras atrasadinhas, nada disso, até acho que é de terras com tradição e totalmente de acordo a que continue, é funcional e a gente agrada a todos. Mas parem sempre com esta pacovice que por aqui há uma originalidade única.
Estas poderão ser boas hipóteses, para se explicar a razão da consoada no dia 25. Gostaria muito de poder conhecer a verdadeira razão.
A que me habituei a ouvir de meus pais, foi, de que, grande parte dos habitantes da nossa região se deslocava para servir os Senhores que possuíam os negócios do vinho do Porto em Gaia. Eventualmente, poderá ser mais uma achega a considerar.
Já agora, uma outra tradição que algumas famílias possuem, é a de comerem a tradicional caldeira de bacalhau bem regada com o azeite fervido, mas com a particularidade de comerem 4 ou 5 da mesma travessa. Poderá dizer-se que por questões de higiene não é muito racional, contudo, aprecio imenso esta tradicional forma de comer, nesta noite.
Boas Festas e bom ano.
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