03 maio, 2010

«Solta-nos Barrabás»: acerca dos jovens e da política

imagePor…. Pedro L. Almeida
Recentemente, quando me preparava para pagar uma compra numa loja vizinha, a simpática proprietária, perguntava-me, com a maior das boas vontades, como ia correndo lá o meu curso para político.
Naturalmente, expliquei que não frequento um curso na área de política, que o meu curso era Teoria da Literatura, e que a política não é profissão. Vem isto a propósito de um artigo publicado no «Público» de 3 de Abril, assinado pela Tânia Marques, com o título “Jovens longe das juventudes partidárias”. Em poucas linhas, a jornalista traça o cenário desolador da consciência política entre os jovens, recolhendo depoimentos de líderes da JSD, da JS, e do Bloco de Esquerda, cada qual fazendo o elogio da lucidez política dos seus militantes. Ilustra-se o alheamento geral da política com os anedóticos casos dos transeuntes que desconhecem o que significa ser “de esquerda” ou “de direita”, convoca-se o lugar comum das juventudes partidárias a funcionar como trampolins para cargos políticos, e polvilha-se tudo com um tom apocalíptico q.b.
É difícil negar as evidências. Quando um jovem, invocando a “identificação com as causas em que acredita”, adere à juventude política de um dos dois partidos que há trinta anos alternam no poder, ou não vê telejornais e não sai do seu apartamento na Foz há demasiado tempo, ou é masoquista. Infelizmente, as coisas nunca são tão simples. Por altura da última campanha às autarquias, recordo-me de ver, já noite, camiões de caixa aberta com dezenas de meninas de t-shirts “Alfredo Henriques” e bonés a condizer, a agitar bandeiras enquanto dançavam ao som do hino do PSD. Na sua maioria nascidas nos últimos anos da década de 80, nunca conheceram outro presidente de câmara. Na sua maioria, sabem que, nessa mesma noite, ao chegar a casa, o autoclismo enviará, talvez por via de algum riacho, para a Barrinha de Esmoriz aquilo que não causa a menor gula. Cresceram a ouvir os pais dizer raios e coriscos dos nossos políticos à hora dos telejornais. Cavaco, Soares, Guterres e Santana foram para elas (e para mim) durante muitos anos os nomes de protagonistas de anedotas. E é provável que, na manhã seguinte, para chegar até à Faculdade, tenham que apanhar a carreira à frente do Hospital às seis e meia da manhã, ou sujeitar-se aos horários enigmáticos do Vouguinha, para chegar à Estação de Espinho e apanhar comboio para o Porto ou Aveiro. Mas ainda havia muitas freguesias onde era preciso gritar “Alfredo Henriques”.
Nenhuma acredita que haverá cargos políticos para tantas jotinhas. E a verdade é que a vida num gabinete cercado de homens trinta anos mais velhos a tratar da burocracia político-partidária não é propriamente a coisa mais aliciante do mundo. Enquanto aclamavam Alfredo Henriques presidente, já na noite da vitória, e tentavam tocar-lhe no blazer quando se dirigia, depois de jantar, à sede de campanha, as colegas de curso actualizavam o facebook, preparavam-se para sair, ou viam um canal de música. (Recentemente, alguém me dizia: “ - Ao fim-de-semana vou para casa, sou de Ovar. Freguesia? Isso não sei, sei que pertence ao concelho de Ovar.”). Não há muitas razões para acreditar que as jotinhas do camião acalentavam o sonho de transformar um pouco o (seu) mundo com a eleição de Alfredo Henriques, que apenas conhecem de ver nos jornais (?) e de ter encerrado os comícios, embora algumas tenham conseguido um cumprimento ou um beijinho na campanha.
O poder vem assumindo explicitamente uma vocação de governamentalidade das consciências. Um gestor, engenheiro, construtor, arquitecto, dono de um café, são cargos tão políticos como vereador. Diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és. A política deixa de ser uma entidade monolítica e localizada e dissemina-se em todas as relações sociais como uma forma de conduta prescrita, uma ortodoxia de opiniões e silêncios que, se o jovem “se portar bem”, o podem levar a algum lado. A contradição surge aqui. Trinta jovens de vilas periféricas a uma cidade periférica sobem a um camião para aclamar uma das figuras de autoridade simbólica nesta estrutura fluída de disciplina de vida. E uma jornalista escreve que os jovens se encontram cada vez mais afastados das juventudes partidárias. A relação de cada jovem com o potencial Poder (o Partido que pode ir para a câmara/para o governo, o presidente da concelhia, a estrutura...) é uma forma de subversão ortodoxa, é a relação impossível de criação de uma identidade pelo sacrifício da própria identidade: a emergência de um indivíduo-na-sociedade através da integração do interdito simbólico encarnado pela lei paterna (a figura tutelar do partido do poder), na sua dimensão protectora e, simultaneamente, obscena. É, por outras palavras, o drama de Édipo, confrontado com a ambivalência emocional do totem e do tabu no horror do incesto (a adesão contra-instintiva a um sistema de valores paternalista) e o desejo (inconfessável) de aniquilar a figura de autoridade, para poder, finalmente, substituí-la. Neste sentido, o gesto de obediência exasperada a uma estrutura política local e a inscrição incondicional num código de comportamento disciplinador é, paradoxalmente, o gesto fundador de uma contraconduta (como a geração de executivos que emerge nos anos 80).
Se estes grupos de militantes se definem por oposição aos colegas (e, nesta medida, há que reconhecer a validade do título do «Público»), algo vai verdadeiramente mal. Porque, reproduzindo os comportamentos de exclusão que estão na origem do conceito “classe política”, afirmam a sua (contra)conduta como modo de assumir uma posição invisível na ordem da governamentalidade (desde o gabinete da cave ao pelouro), e isso representa a própria negação da evolução. Nesta subtracção ao todo, algo se perde. É esse esvaziamento que melhor define a relação dos jovens com as jotaêsses e as jotaêssedês, enquanto espaços de aquisição de individualidade pelo acto de dupla negação: negação do todo social e negação da dimensão subjectiva – o que conduz à suspensão do próprio real, o real que esperava pelas meninas do camião laranja à chegada a casa, na falta de saneamento, o real que se infiltra na contradição entre a evidência de um concelho (de um país) arcaizado, de estruturas políticas fossilizadas, e a alegria das jotinhas em noite de campanha eleitoral para manter tudo na mesma. Ao longo de anos os nossos políticos esforçaram-se por passar a imagem de que já não há esquerdas nem direitas, que isso é coisa doutros tempos, que já não há ideologias, que somos todos do centro moderado, que a nova política chama-se “economia de mercado”. Esperavam agora que os filhos soubessem dizer para a câmara da televisão qual a diferença entre ser de esquerda ou ser de direita??
Esse divórcio entre o ser e o pensar (entre o cogito e o sum) cria uma fractura demasiado perigosa para continuar a ser alegremente ignorada. Essa fractura é o produto de uma ideologia construída pelos dois partidos no poder há trinta anos, um jogo de dissimulação e hipocrisia alimentado por todos nós que preferimos ser cegos a acreditar que isto vai mesmo mal e que é preciso mudar. Não ando a estudar para político. Honestamente, nem posso dizer que a política me agrade. Mas, como diria Francis Bacon, mais vale transformar a política antes que seja tarde, e ela nos transforme a nós.

5 comentários:

Paulo Pinto disse...

Caro Pedro,

Não posso deixar de comentar este teu belo naco de prosa. Não li o artigo do Público em questão logo não posso tirar conclusões sobre o seu conteúdo mas parece-me que as afirmações que aqui fazes são um clássico complexo de superioridade dos partidos menos votados porque “não são afectados pelo poder”. Um discurso bastante típico nos dois partidos mais à esquerda que acham que as consciências se deixam corromper com a possibilidade de exercer o poder.

Na política, assim como na vida, não podemos cair no erro de nos acharmos melhores do que outros. O pensamento “eu estou na política para ajudar o país, os outros estão por interesse” leva-nos para um julgamento de carácter injusto que só mostra sobranceria e, quando esse é o sentimento que emana do discurso político, não podemos agoirar nada de bom vindo de quem o faz. Eu acredito que quando um jovem adere a um partido político, seja ele qual for, o faz porque tem vontade de intervir, porque tem vontade de mudar, porque se identifica com a base ideológica.

Algo que têm de bom os “dois partidos que alternam no poder”, como tu lhes chamas, é que não impõem aos seus militantes uma escola de doutrina. Não pegam nos seus militantes mais jovens e passam horas enfiados numa sala a explicar o que é ser socialista ou ser social-democrata. Estes partidos acreditam na inteligência, no crer e na vontade de quem a eles acorre sem precisar de lhes lavar o cérebro.
Estes jovens com vontade de mudar, quando decidem que querem fazer parte de um partido, fazem o seu exame de consciência com base em quê? No que viram (e ouviram os pais dizer) de Cavaco, Soares, Guterres, Santana e Sócrates? Também. Mas neste exame de consciência também incluem o que conhecem de Vasco Gonçalves e Álvaro Cunhal, por exemplo. Afastam-se de ideologias vindas destes senhores pois sabem que a sua aplicação em Portugal foi terrível até Novembro de 1975, e que sua aplicação actual em países como a China, a Coreia, a ex-URSS, Cuba, Laos tem tido efeitos castradores dos direitos das pessoas e os jovens não querem isto na sua vida. Afastam-se de partidos que têm Estaline e Trotsky na sua génese. Afastam-se de partidos que não respeitam os direitos dos imigrantes e tendem para o racismo e a xenofobia.
Caro Pedro, os nossos jovens são inteligentes e não querem estas coisas. Querem pertencer a partidos que promovam a liberdade, sem radicalismos de esquerda nem de direita que levam ao desrespeito pelos direitos humanos e à limitação da liberdade.
As juventudes partidárias Socialista e Social-democrata, bem-comportadas, segundo a tua definição, percebem que não é preciso ser radical para ser irreverente e que pintar paredes e acorrentar-se a portões não são as únicas formas de conquistar direitos. Hoje, há outros meios para lutar, outras formas de estar e de intervir que só uma enorme arrogância as poderia considerar menores.
Cada um contribui com o que lhe parece mais correcto. As juventudes partidárias não são um grupo de cães raivosos, que andam todos a “cheirar” o poder, a marcar terreno para atacar no momento indicado.
Os jovens questionam, por exemplo, como é que há partidos que afirmam ter vontade de mudar e ao mesmo tempo dizem que não querem ser poder, só querem fiscalizar. Os jovens questionam como é num mundo inseguro e com uma ameaça constante de terrorismo há partidos que se manifestam contra a existência de forças armadas. Os jovens questionam como é que há partidos que fomentam o convívio e a solidariedade com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia. Os jovens portugueses sabem o que querem e não querem isto.
A alegria dos jotinhas em cima do camião de Alfredo Henriques é a mesma alegria dos jotinhas de braço no ar a gritar Cuba Vencerá!!!
Um dia vai ter com as meninas em cima do camião de Alfredo Henriques e pergunta-lhes o que eles acham que pode mudar neste país, que ideias têm para o futuro, que planos têm para pôr a economia a crescer e proporcionar uma vida melhor a todos. Vais ficar surpreendido.

Leão Hebreu disse...

Estimado Paulo,

Prestigia-me muito o teu comentário, que desde já te agradeço.

Merece-me apenas a recordação da proverbial sentença: "ao rico não faltes, ao pobre não prometas". Também eu acredito que a necessidade pode mais do que a ética. Ainda mal.

Cada um é aquilo em que se põe.

Um abraço.

João Ramos disse...

Parabéns, Sr Paulo Pinto, pela grande lição que procurou transmitir a esta rapaziada acéfala, devido às frequentes desinfecções dos neurónios.
Não é só "malhar" como dizia alguém há uns tempos atrás. É preciso fazer, criar riqueza, para se poder distribuir.
Esta rapaziada faz lembrar também as virgens púdicas, são-no porque nunca tiveram oportunidade de o não ser.

Anónimo disse...

Muitos parabéns Sr Paulo Pinto.

XEIRINHAS disse...

As palavras de Aguiar Branco na AR no 25 de Abril, encaixam perfeitamente na discussão e complementam muito bem o que o PP aqui trouxe.